Conto sobre o interior e a essência



        Durante os quase cinco anos de relacionamento, por muito tempo eles planejaram e sonharam com essa pequena viagem para o interior, mas que sempre era impossibilitada por incompatibilidade de agendas. Quando finalmente conseguiram uma data livre em comum o coração dela saltitava de alegria com a possibilidade de finalmente apresentar ao namorado a cidade em que crescera. Fizera a mala com antecedência, mas quase não dormiu de ansiedade durante a noite anterior.

        Ele tinha boas expectativas com a viagem, mas não sabia muito bem o que esperar. Por mais que já tivesse escutado ela contar diversas histórias sobre essa cidade pequena e o estilo de vida lá, a compreensão não era muito palpável pra ele que crescera dentro da selva de pedras que é o coração da capital. Com a mochila nas costas e uma sacola de snacks na mão para a viagem ele tocou a campainha dela logo cedo no dia marcado. Viu um sorriso de empolgação no rosto da amada e retribuiu com a mesma intensidade.

        As duas horas e meia de estrada passaram sem que percebessem. O calor ia ficando cada vez mais intenso e sufocante, com baforadas de ar quente que entravam pela janela e pareciam ter vindo diretamente do deserto do Saara, que ele só vira em filmes - o que era uma sensação muito estranha para quem conhecia apenas o calor úmido do litoral. Enquanto dividiam o fone de ouvido observavam a vegetação à janela ir mudando de cor a cada quilômetro percorrido. Aos poucos o verde vivo foi ficando mais claro e opaco, até atingir os tons amarronzados da seca.

        - Percebe que a vegetação está ficando cada mais mais seca e queimada? - Ela falou apontando para a janela. - Isso significa que estamos chegando no meu sertão.

        - É lindo, parece paisagem de filme! - Ele falou, admirado com a cena das serras e morros de vegetação seca que seus olhos alcançavam. 

        - Pra mim não é lindo. É triste, porque remete à fome e miséria da seca que vi quando nem tinha idade de entender o que é isso.

       A viagem seguiu em silêncio até alcançar o destino. Quando começou a avistar um pequeno vilarejo de casas à frente, ela ficou empolgada e começou a tagarelar sobre sua cidade natal e as lembranças que tinha dali. O carro foi adentrando às ruas da cidade enquanto ela ia empolgada falando em qual rua estavam e apontando todos os lugares dali que ela conhecia.

        - Essa aqui é a Rua Alto da Arca, naquela casa ali a minha avó morou na infância. Naquela outra casa amarela ali morava minha melhor amiga da segunda série, mas hoje ela mora na rua Cruzado Novo. - Ela falava o mais rápido que conseguia enquanto apontava com o dedo pela janela antes que o carro seguisse e deixasse para trás algum importante local que ela queria mostrar. - Aquela casa com portão branco era de uma menina que estudava comigo, eu vinha fazer trabalhos da escola com ela e a mãe fazia bolo pra comermos, hoje ela já está casada e tem dois filhos. Tá vendo aquela loja de informática ali? Há vinte anos era uma... Eita! Olha essa mulher passando na rua, de blusa verde, ela é irmã de um amigo meu. Aquela loja que eu tinha mostrado, há vinte anos era uma loja de roupas e minha amiga Maíra trabalhava lá nos sábados quando tínhamos catorze anos, e... Olha! Aquela ali é a casa do meu ex-namorado! Enfim, aquela loja que eu mostrei que a minha amiga trabalhava, eu ia todo sábado pra lá fazer companhia a ela e ficar fofocando sobre todo mundo que entrava na loja. Eita, olha ali a casa da minha tia Margarida, ela cozinhava tão bem! Eu adorava vir comer aqui na infância. Ali na frente, à direita, é a escola que eu estudava, tá vendo?

        - Aquela do muro vermelho?

        - Sim, mas no meu tempo o muro era azul. Eu estudei lá dos cinco anos até os dez, havia um campo de areia nos fundos onde nós passávamos o recreio inteiro brincando e correndo. Foi lá que eu conheci as minhas melhores amigas de infância que te falei. Essa aqui é a principal praça da cidade, porque fica na frente da igreja católica, e você sabe né que no interior as cidades surgem e vão crescendo em torno da igreja, então é o ponto central da cidade. Aí, durante a adolescência eu vinha pra missa e quando acabava ficava nessa praça conversando com meus amigos e namorando nesses bancos. Ah, namorar no banco da praça... um clássico de cidade de interior! Ali no topo da praça é o famoso coreto, quase um ponto turístico da cidade. Inclusive a decoração do natal que a prefeitura fez nele esse ano está muito linda! Essa padaria vende uma coxinha deliciosa, depois te trago pra comer aqui. E aquele ali é o chafariz do bairro, antigamente não havia água encanada nas casas e as pessoas iam com seus baldes buscar água nesse chafariz, hoje ele está desativado. Eu sempre amei aquela árvore ali, acho ela muito linda, e quando era criança eu...

         As histórias continuaram numa velocidade maior do que ele conseguia assimilar. Apenas olhava para ela e onde seu dedo apontava enquanto ela falava com os olhos brilhando, admirando a paixão com que via a amada falar desses lugares tão simples, que a princípio não pareciam ter nada especial, mas que guardavam tanto significado e memórias afetivas pra ela. 

        - Esse aqui é o bairro da Laranjeira. Tem uma pequena fila nesse bairro que pertence à minha família. Aqui, a partir dessa casa verde, até aquela casa branca que você vê lá no alto da colina, são todos meus parentes.

         - Como assim?! - Ele exclamou em tom de choque. -  Devem ser mais de vinte casas!

        - Pois é. Minha tataravó tinha uma grande fazenda na Paraíba, quando o marido dela faleceu ela vendeu a fazenda e veio pra Pernambuco com todos os filhos pequenos, e comprou um terreno gigante aqui, que na época se chamava Sítio Laranjeira. Os filhos dela foram crescendo, casando e construindo suas casas nesse terreno, e mais tarde os netos e bisnetos seguiram dividindo o terreno e construindo. Ao longo dos anos o Sítio Laranjeira foi virando um vilarejo, que foi crescendo e virando um bairro. Hoje todos que moram aqui são meus parentes de segundo e terceiro grau.

         - Caramba, impressionante!

         - E essa aqui é a casa da minha família.

        Chegaram cansados, mas muito felizes à casa em que ela crescera. Tiraram as malas do carro e ela seguiu empolgada apresentando todo o espaço. Cozinha, sala, escritório, quartos, banheiros, quintal. Era uma casa de sítio enorme, com muitas plantas, curral e galinheiro. Ela fazia questão de mostrá-lo cada metro quadrado e contar histórias que aconteceram ali. O dia do churrasco em que caiu pimenta no olho dela quando criança. O dia que apareceu uma cobra coral que envenenou seus dois cachorros e ela quem encontrou os corpos sem vida. A festa de São João em que fizeram uma fogueira na frente da casa. A festa de casamento de seu tio em que colocaram várias mesas no terraço para receber os convidados. Por onde o primeiro namorado conseguiu entrar lá escondido de madrugada para dormirem juntos pela primeira vez. Tantas histórias e memórias! O coração aquecia, mas também doía um pouco com a saudade.

        - Durante minha infância, quando meu avô era vivo e morava aqui, nós tínhamos uma rotina todos os dias de manhã. Eu tinha por volta dos cinco ou seis anos de idade. Acordávamos às cinco horas, e a primeira coisa do dia era parar em frente à cruz no fim do corredor e fazer uma oração. Meu avô não começava o dia se eu não repetisse as orações com ele. Então se iniciava a procissão para abrir todas as janelas da casa para deixar o sol entrar. Depois saíamos por esta porta aqui em direção ao quintal. Aqui nesse depósito aos fundos ficava armazenada a comida dos bichos. Meu avô pegava um punhado de milho e entregava outro em minhas mãos e íamos juntos até o galinheiro jogar o milho. Eu dava risada quando via as galinhas aos meus pés gritando "có có có" enquanto esperavam eu jogar o milho. Enquanto elas comiam nós apanhávamos os ovos e meu avô os levava para a cozinha. 

        - Depois era a vez de irmos alimentar os bodes que ficavam naquele cercado ali - ela continuou contanto. - Meu avô colocava ração nessa cocheira, e me entregava uma mamadeira com leite para eu alimentar o pequeno filhote que ele havia comprado e não tinha a mãe por perto para mamar, e ainda era muito pequeno e não sabia comer a ração. Depois íamos ao curral das vacas, aquele último no fim do terreno, tá vendo? Meu avô primeiro pegava um balde e ordenhava o leite. Sempre pedia que eu observasse um pouco afastada para a vaca não ficar nervosa. Em seguida eu ajudava meu avô a colocar palma na cocheira das vacas, e voltávamos para casa com o balde de leite ainda morno. Enquanto minha avó colocava o cuscuz no fogo e fervia o leite fresco, nós ligávamos a mangueira e começávamos a regar as plantas que tinham nesse quintal. Antes da seca matar, havia pé de laranja, acerola graviola, pinha, seriguela, limão, manga, pitanga, além da pequena horta com tomate, coentro, cebolinha e hortelã. Tirávamos alguma fruta do pé e levávamos para minha avó fazer suco. 

            - Que delícia, queria muito poder tirar essas frutas do pé. - Ele disse.

        - Depois lavávamos os pés nessa torneira aqui ao lado da porta, para não sujar a casa, e então sentávamos à mesa para comer cuscuz com o leite e ovos que havíamos acabado de recolher. Depois do café já era hora de eu ir brincar sozinha porque meu avô, cansado, sentava no sofá com a televisão ligada para dar seu cochilo da manhã depois de tanto esforço físico. E essa era a nossa rotina todos os dias.

        - Aparentava ser uma vida muito tranquila. - Ele falou.

        - E era. Essa foi a vida que meu avô escolheu para ele após a aposentadoria. Era o sonho dele. Meu avô já morou em muitas cidades grandes por causa do trabalho, tinha uma boa condição financeira, casa no litoral e tudo mais, e mesmo assim escolheu vir viver seus dias de sossego na aposentadoria aqui nesse sítio. A rotina de cuidar dos bichos e das plantas era o que realmente engrandecia a alma dele e o trazia felicidade. Foi aqui que ele viveu seus últimos dias e nunca se arrependeu dessa escolha. - Ela completou com os olhos lacrimejados.

            - Que bonito! - Ele disse.

        - Também acho. - Ela respondeu e em seguida fez uma pausa, pensativa. - Eu tive uma infância muito feliz aqui, mas apesar disso não gosto muito do interior e do sítio. É na cidade grande que eu me sinto verdadeiramente em casa, e não me imagino buscando isso que meu avô buscava para ter a paz nos seus últimos dias. Mas entendo porque tudo isso era tão importante pra ele, e olho com muito respeito pra esse estilo de vida tão diferente do que quero pra mim.

        - E agora, você está pronto pra conhecer meu antigo quarto? - Ela disse animada e nostálgica enquanto o puxava pelo braço e abria a porta. - Aqui em frente à janela era onde ficava minha mesa de estudos. Do lado ficava o espelho onde eu tirava fotos pra postar no Orkut. Nessa parede aqui ficava a minha cama, e desse outro lado o guarda-roupa. Bem aqui era onde ficava meu pôster de RBD, posicionado estrategicamente para aparecer no fundo das fotos no espelho. Tá vendo essa mancha escura na janela? Era um adesivo do Che Guevara que eu colei aí aos treze anos. E bem aqui atrás da porta está até hoje minha obra de arte, meu nome que eu risquei com lápis de colorir aos dez anos.

        - Que fofo que deixaram! - Ele falou em meio a um sorriso doce.

        - Nem eu acredito que ainda está aqui.

        - Posso tirar uma foto?

        - Claro!

        No fim da tarde foram visitar a casa de um primo do avô dela. Chegando lá foram recebidos com sorrisos, e imediatamente a esposa do primo começou a passar um café e colocar comida em cima da mesa. Pão, bolacha, bolo, doce de banana, doce de mamão.

        - Não precisa de tanta comida assim, mulher! - Ela falou um pouco envergonhada.

        - Não, mas você tem que provar esse doce aqui que eu fiz! Tá delicioso!

        Ela não insistiu, pois sabia que é uma cultura muito forte no interior servir comida em abundância a qualquer visitante que chega na casa. Enquanto o cheiro de café fresquinho tomava o ambiente e eles provavam cada uma das comidas à mesa (para não fazer desfeita, claro!), a conversa girava em torno de atualizar os visitante sobre a vida de todos ali. Quem se casou, quem se separou, quem teve filho, quem pegou COVID, onde o filho da prima de terceiro grau está trabalhando. Logo a conversa se transformou em contação de histórias do passado. Ele não conhecia absolutamente nenhum dos presentes na história, tampouco entendia metade do que era falado, mas mesmo assim ouvia a tudo com fascínio e curiosidade.

        - Muito interessante como a vida social aqui é pacata e simples, se resume a ir à casa das pessoas conversar sobre a vida de outras pessoas. - Ele comentou quando estavam de saída.

        - Sim, é algo cultural e muito forte aqui. - Ela respondeu.

        - É um estilo de vida muito diferente. Parece que o tempo passa mais devagar, tudo desacelera e fica mais tranquilo e simples.

        Quando voltaram pra casa já estava de noite. Ele olhou para cima e suspirou enquanto admirava um belíssimo céu estrelado que seus olhos nunca tinham visto - as luzes da cidade grande ofuscam a maior de todas as belezas naturais. Para completar a paisagem de filme havia uma lua cheia incandescente no céu. De repente ele se sentiu tomado pelo sentimento de gratidão por tudo que tinha visto e vivido ali.

        - Obrigado por me trazer aqui. - Ele começou a falar olhando nos olhos da amada. - Muito obrigado por ter me mostrado todos esses lugares e me contado todas essas histórias, por ter aberto as portas e deixado eu enxergar o seu interior de uma forma tão crua e bonita. Te conheço há cinco anos, mas sinto que agora estou vendo pela primeira vez a sua essência. Entendendo verdadeiramente quem você é, e porque você é. Entrando em contato com tudo aquilo que te fez ser essa pessoa incrível que eu tanto amo e admiro hoje.

        Eles deram um abraço apertado, seguido de um beijo terno, iluminado pela lua cheia que brilhava acima do casal. Os corações aquecidos batiam ritmados no peito. Aquela viagem tão despretensiosa se tornaria uma das mais especiais que tiveram, e eles sabiam bem disso.

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