Angústia matinal



        Ela percebeu que estava acordada antes do despertador tocar. Ficou imóvel na tentativa de não despertar seu corpo e tentar adormecer novamente, mas foi inevitável. O corpo estava cansado e queria dormir, mas sua mente já estava borbulhando em pensamentos, mesmo que ela ainda não tivesse aberto os olhos. A cama estava macia, a posição estava confortável e o cobertor estava quentinho naquele dia incrivelmente gelado para os padrões de fevereiro na cidade do hellcife. Então ela se martiriza por não conseguir dormir mesmo quando todos os fatores estão favoráveis a isso. 

        "Ok, preciso aceitar que não vou conseguir voltar a dormir e começar o dia", pensou ela depois de 40 minutos na mesma posição sem abrir os olhos. Pegou o celular e viu as notificações. Perdeu outros 20 minutos se atualizando dos acontecimentos da madrugada no big brother, como se ela não tivesse mais nada para fazer naquele sábado em que ela sabia que não podia descansar porque precisava terminar o TCC da sua pós-graduação. Levantou, foi ao banheiro, fez xixi, lavou o rosto, e voltou pro quarto pensando "e agora? qual o próximo passo de acordar mesmo?". Se sentia desnorteada.

        Olhou a hora na tela de bloqueio do celular e pensou "nossa, já está tarde, preciso tomar meu café da manhã e começar a fazer as pendências de estudos que ficaram de ontem". Mas seu corpo não se moveu da cama. Continuou deitada, imóvel, olhando pro nada. Sabia o que precisava fazer, mas não tinha energia para isso. Percebeu sentir uma pequena angústia adormecida dentro dela, e lembrou que na noite anterior, antes de dormir, havia sido inundada por uma onda de desesperança e desespero com as notícias sobre o governo brasileiro e sua ineficácia em lidar com a pandemia. Ao mesmo tempo que ela se sente uma idiota por deixar que isso afete sua energia e atrapalhe sua produtividade, tenta ser gentil consigo mesma e dizer para o espelho que ela não pode se exigir tanto na conjuntura atual.

        Mas a angústia não parecia ser só por causas externas. Ela sabia que tinha motivos internos também, mesmo que pra outra pessoa eles pudessem não fazer muito sentido. Há uma semana ela recebeu a notícia de que foi aprovada numa seleção de trabalho que ela almejou por muito tempo, mas ela não se sentia confortável para comemorar e contar a notícia às pessoas queridas, porque tinha uma sensação incômoda de que essa conquista poderia ser arrancada dela a qualquer momento.

        "Deixa eu levar todos meus documentos e assinar o contrato primeiro, ai sim terei uma garantia de que vai dar certo e poderei contar às pessoas", ela pensou no início. Mas já haviam se passado três dias desde que ela assinou o contrato e ela ainda sentia que algo podia dar errado. Então, deitada na sua cama olhando a capa da sua almofada da Lufa-Lufa sacudir com o ventilador, ela se questionou se esse sentimento de insegurança que a impedia de comemorar sua conquista era uma autossabotagem. Tentou resgatar em sua memória o que sua terapeuta havia dito algumas semanas atrás sobre autossabotagem e não conseguiu. Sorriu ao perceber como é conveniente pro seu cérebro simplesmente apagar algumas coisas que podem causar-lhe dor.

         Ela finalmente levantou da cama e foi esquentar a batata doce que estava na geladeira há dois dias. Seus pensamentos e angústia a acompanharam. Enquanto comia e escutava a mãe falar sobre algo que ela não estava prestando atenção verdadeiramente, pensava em como iria reorganizar suas pendências do dia para conseguir contemplar as pendências de ontem que ela não deu conta. Lá no fundo ela sabia que novamente não conseguiria dar conta de tudo, mas planejava mesmo assim porque se não tentasse abraçar o mundo se sentiria uma fracassada.

        Após o café da manhã ela forrou a cama na tentativa de que essa sensação de organização do ambiente a ajudasse a se sentir mais motivada para seguir à risca seu planejamento de afazeres pro dia. Então, lhe ocorreu que na próxima segunda-feira começaria no seu novo trabalho, e por isso ela deveria tentar tirar o fim de semana para descansar. Contudo, logo desistiu da ideia porque sabia que não ia conseguir descansar plenamente. Fazia dois meses que ela estava parada em casa mas não conseguia descansar de verdade porque sempre que fazia algo para relaxar se sentia culpada por não estar fazendo o TCC, e quando tentava fazer o TCC não conseguia porque se sentia cansada demais.

        Dessa forma, ela se sentia culpada também por não conseguir descansar. Tinha o hábito de transformar seu tempo de lazer em mais pendências para sua lista. Em seu planner anotava os afazeres do dia: 1) pagar os boletos; 2) ler aquele texto para o TCC; 3) fazer atividade física; 4) terminar a segunda temporada daquela série". E então, quando não conseguia um tempo pra assistir sua série, passava o dia seguinte se sentindo culpada por mais uma pendência não concluída - mesmo que essa pendência tenha sido ela mesma que se impôs, com o objetivo de fazê-la relaxar, não de fazê-la sentir-se mal por não conseguir riscar este item do planner. Mais uma vez ela se questiona "essa minha culpa excessiva é autossabotagem?". Parece que já tem um tópico pra próxima sessão de terapia.

        Ela liga uma playlist calminha do spotify na tentativa de entrar numa good vibe e conseguir ser produtiva, mas logo sua atenção é desviada para a notificação do celular que a lembrava do aniversário de sua amiga no dia anterior. "Merda, esqueci de dar parabéns a ela!". Aquela notificação havia ficado lá no celular durante todo o dia porque ela sabia que se deletasse a notificação esqueceria de dar parabéns, e mesmo assim esqueceu. Toda vez que olhava a notificação pensava "daqui a pouco eu mando". O dia acabou e ela não lembrou. Envergonhada, escreveu uma mensagens de parabéns atrasado para sua amiga, pensando "como eu cheguei a esse ponto da falta de energia para fazer minhas pendências do dia?"

        Então, após mandar a mensagem ela largou o celular de lado e ficou sentada na cama olhando pro nada, ouvindo a playlist que ainda tocava. Pegou seu pote novo de hidratante com cheiro de ameixa e começou a passar pelo corpo enquanto sentia o clima agradável. Uma gostosa sessão de carinho pela manhã para riscar da sua lista o momento de autocuidado. Aproveitou para tentar botar seus pensamentos em ordem, pois depois de quase seis anos de terapia sabia que isso era uma prática de autocuidado mais importante que o skincare. 

        "I wanna hold the whole wide world right here in my open hands, maybe I'm just a little girl... a little girl with great big big plans", dizia a música em seu celular. Ela pensou na ironia de estar sofrendo porque tenta abraçar o mundo enquanto a música literalmente romantizava isso. Mas, de alguma forma, aquela música de batida gostosinha, cantada por uma voz doce e suave, a trouxe um sentimento gostoso, de conforto em meio às suas angústias. Quando a música acabou ela ligou o computador, disposta a começar o que precisava fazer naquele dia para dar mais um passo em direção aos seus grandes planos de abraçar o mundo.

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